segunda-feira. 02.10.2023

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Alimento

Não tarda bate a meia-noite. Será tarde para alguns. Demasiado tarde para outros. Por aqui ando à luta com estes gatafunhos que, se não chover muito mais, ainda hoje se encontrarão deitados na folha. Prontos! A chuva fascina-me ao ponto de largar a tela e, alcandorado na janela, observar os pingos lúcidos, transparentes, que rasgam a noite e despertam os sentidos. Parece a luz de um outro Norte. Distante. Mágico ao ponto de sedução.

Componho os óculos e volto às letras. Ao tear destas linhas colhidas na espuma dos dias. Os retratos que sobram deles. Ao trás-os-montes desta página. À minha raiz. Andei por terras do reino esta semana que se findou. Da terra quente à terra fria. De Valpaços a Vila Real. De Chaves a Boticas. Almocei em Carvalhelhos no dia em que se sepultou o entrudo. Terra de água, similar à minha, mas onde, em pleno Barroso, como sempre, se come bem. Autenticamente bem. Não é um roteiro de viagem ou um guia de restauração esta singela crónica. Nunca o pretendeu ser. Mais uma fuga da ilha. Para que sempre a conheça. E alimente outras fomes.

Sabe bem sentir novas aragens, novos travos e trovas. Novos aromas. Especialmente, quando pela mão, ou pelo peito, levamos os amigos de sempre. Literalmente de sempre. E com eles, custa-me sempre perceber se algum vez tivemos vontade de crescer. Se alguma vez abandonamos aqueles recreios, aquelas salas frias que a amizade, que os verdes anos inundavam de seiva, de calor, de fraternidade. Laços firmes que, de tão amarrados, permanecem. Umas vezes atados pelo coração...outras pelo estômago! Solto um sorriso! Esta minha teimosia em não crescer permite o mais absurdo e onírico sentido ácido de irresponsabilidade. Volto ao pátio dessa escola onde deixei a minha adolescência com a mesma facilidade com que muitos mudam de opinião ou de camisa. Experimentem!

Retorno ao vidro. À janela que me acolhe e insiste em mostrar-me o mundo como ele é. Tudo é diferente. Eu sei. Até esta noite que cai gelada, com pingos de água a jorrar em cascata, não é a mesma. E nesta nudez melancólica não adianta parar, ou esquecer, os ponteiros. Prefiro a quietude da estrada que deixamos, preenchida, no caminho.

A sensação suave dos dias vencidos, sem apelos nem atropelos. Com o sabor a vida das estações que perfumam agora a memória. Retratos repletos. Os sabores que neles regressam. A parte de nós que repousa nessas molduras. É quando, por fim, entendemos esse novelo, sem a mágoa da melancolia, que finalmente sentimos o desabrochar do sol.

Os bagos de luz que rompem o céu e, cúmplices, se estatelam no rosto para que se afastem todas as sombras. Depois, despertos, observamos. Vemos-nos por ali a crescer, rodeados dos amigos que importam e que a planície, liberta de gritos, permanece verdejante, que a coragem liberta todos os sonhos e que a noite já não mete medo! E se aprendeste a noite adormece-a devagar. Observa o seu ninar como se lhes desses os olhos a beber. Para que sempre lhe possas oferecer o primeiro voo de um pássaro em pleno coração do Inverno.
 

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Alimento