sexta-feira. 01.12.2023

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Escrever

Novo livro pronto. O meu terceiro livro. Seguiu na sexta-feira para a gráfica. Agora é tempo para que a luz irrompa.

Escrever é o acto mais solitário do mundo. Poucos o sabem. Em quietude, um caminho que se percorre em todas as suas latitudes. O tempo abstrai-se, os segundos martirizam-se. O silêncio é sempre o mesmo quando horas a fio martelas os caracteres do teclado perturbando a noite. A ribeira ao fundo, que sempre me acompanha, segue indiferente, ainda que eu tente afinar as sístoles com o pulsar da sua água rente à margem. Regressas à página. Só. Às voltas com a tua cabeça até que tudo seja mudo e o silêncio lume.

Entre viagens que vais tecendo, preenches o mundo com terras e estradas. Depois árvores, desejos e casas (que tantas vezes desmoronam mas que voltas a erguer). Sem que te apercebas, vagueias por ali à procura da última brisa, de botões velhos na gaveta da mesinha da sala, da última silhueta, que sustendo a respiração, teima em esconder o rosto. Tantas vezes à procura de ti.

Comecei a escrever desde que me lembro. Pequenas frases na primária que desfolharam em longas redações na quarta classe. Rábulas e contos no preparatório. No secundário escrevia poesia nos bancos de “comboio” do café Carlton entre horas vazias no horário.

Sei agora que deveria ter guardado todos esses traços. Esses e tantos outros que a alma impaciente, cobarde, rasga depois. Não o fiz.

Há, sei que há, algumas letras que traçava à queima-roupa nos cadernos dos colegas de circunstância. E nessas amplas sebentas, de um tempo que fisicamente apenas habita nas avenidas da minha memória, deixei parte de mim.

Nunca tive necessidade de escrever. Faço-o seguindo o apelo da alma. Simplesmente.

Na semana passada alguém que não conhecia abordou-me na cidade.

Entre uma timidez demasiado crua, pronunciada, de parte a parte, seguiu-se o diálogo possível. Perguntou-me para quando o novo livro. Disse-me depois que há muito me segue nas redes sociais e que aprecia a minha poesia. Agradeci-lhe.

Não sabia mais que dizer. Não sei nunca o que dizer para afastar a timidez do elogio que me tecem.

O novo livro é duro. De prosa livre e cerzido à flor da pele. Com tinta da alma. Sosseguei por uns tempos os versos. A poesia continua a ser tratada como um parente pobre da literatura. E quem a escreve, quem se predispõe a expor o âmago, oferece o segredo de Sésamo à trivialidade do quotidiano. Precisamos, cada vez mais, de oferecer segundos à pressa que traja a vida. Parar, respirar. Oferecer alimento à fome dos sentidos! Mesmo quando as quadras rasgam a realidade com o frio da verdade! Nos retiram da cegueira.

Talvez tu, quando me abordaste, ficasses com má impressão de mim. Não sou frio.

Apenas meu jeito simples de abraçar o mundo me impede de triunfalismos ou falsas vaidades.

Continuo fascinado no alto da rocha a ouvir no eco o meu riso de menino. Nesse absoluto e fascinante silêncio que só a passada segura nos oferta. Nos protege! Só estou só quando escrevo.

Assim a ti, que outro dia te acercaste de mim, ofereço estas letras. Talvez da próxima sirvam para atiçar as brasas à conversa!

E não! Este não é o meu terceiro livro! Escrevi dezenas nessas sebentas de espanto!

Onde todas as frases incendeiam as noites para que sempre me encontre!

Paulo Santos é natural de Vidago. Casado, pai de dois filhos desempenha profissionalmente funções de gestor de projetos num Atelier de Arquitetura. É membro da ALTM – Academia de Letras de Trás-os-Montes e da comissão instaladora da Academia Vidaguense. Publicou duas obras poéticas: Seara Mondada (2016, ed. Chiado Editora) e Seara Dourada (2018, ed. Chiado Books). Concluiu a obra Seara Despida com edição prevista para 2023. Em coautoria editou, em prosa, a obra: A Justa – 1º Centenário da morte de Eugénia Campilho Montalvão (2020, ed. Lisbon Internacional Press) e Bonifácio da Silva Alves Teixeira – O benemérito de Vidago (2021, ed. Lisbon Internacional Press). Também se irá iniciar, como autor, no universo da prosa com a edição o do diário No farol de meus dias, em fase final de conclusão e com edição prevista para 2022. A convite da editora e do coordenador do projeto, a sua poesia integrou a Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Entre o sono e o sonho volume X (2018, ed. Chiado Books), volume XI (2019, ed. Chiado Books), volume XII (2020, ed. Chiado Books) e volume XIII (2021, ed. Chiado Books). Viu editado, em várias publicações, a sua obra em prosa e poesia, das quais destaca: 
Em poesia: Liberdade-Antologia da Poesia Livre - Vol. I (2019, ed. Chiado Books ) e volume II (2021, ed. Chiado Books ); Tributo - Homenagem a autores marcantes da literatura universal - Vol. 1 (2019, ed. Chiado Books); Quarentena – memórias de um país confinado (2020, ed. Chiado Books). Em prosa: Natal em Palavras - Coletânea de Contos de Natal (2018 e 2019, ed. Chiado Books); SMS – Coletânea de Micro narrativas Ficcionais - Volume I (2019, Ed. Chiado Books); Três quartos de um amor - Coletânea de cartas de amor –Volume III - (2020, ed. Chiado Books); Vozes Transmontanas - Coletânea 2020 da ALTM (2020, Edição ALTM). O poema da sua autoria “Beijo” integrou o tema “Timeless” do álbum “Melodic anthology” (2020) do músico Hélder Almeida.

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