sábado. 02.12.2023

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Tempo

A Natureza não nos obedece. Escrevi essa observação na página de um livro que breve irá cheirar a novo. Trago este singelo trecho à memória nesta noite que teço esta crónica e o dia, longo, se trajou de Inverno.

Anoto: A natureza escreve páginas com uma chuva tão cristalina, doirada no âmago pelo sol que se espreguiça por de lá das nuvens, que nos enfeitiça. Um vento despreocupado, depois, alheando-se do Verão que reina, convida a dançar os últimos pinheiros da Primavera. Observei-os no lusco-fusco. No topo da colina. No ponto mais alto da minha terra onde, quando longe, imagino que por ali se cruze o céu, as aves e a saudade.

Ouvi Leonard Cohen sibilando na brisa. As árvores, distantes, inquietas, dançando, unem-se pelas copas...Dance me to the end of love....

Regresso às letras. Aponto: As estações já não se vestem como outrora. Acordam ao calhas e vestem o primeiro trapo que os olhos remelados enxergam. À pressa. Como se não soubessem para onde vão.

Outro dia um velho (escrevo velho porque lhe quero dar dimensão...) resmungava que o tempo já não é como dantes.

Ouvi-o. Esbocei, em surdina, o meu mais sincero sorriso no interior. Segui, depois, caminho. O Velho ficou na esquina do decrépito Hotel a ralhar com os seus ponteiros. O tempo foi-lhe indiferente.

Nada é como dantes. Eu sei. Desconheço, contudo, se há culpados nisso.

Se ainda rugisse em nós o fogo vivo, e este lavrasse como outrora, rasgando planícies de espanto no céu dos dias, poderíamos culpar a falta de comburente que mantivesse a chama acesa. Mas nem isso. Aprendemos nos dias que o tempo é uma ordem fria. Insensível.

Do outro lado da rua, onde tudo parecia pior, nada como dantes, o velho esquece-se que o tempo ainda deixa algum gosto nos lábios. Mesmo quando a geada embranquece a tundra na cabeça, nos mastiga os ossos, as lembranças e as vontades e no fim nos cobre de temor.

Fica esse sabor a vida na seiva dos lábios. Se os mordiscarmos ao de leve, abrimos o caminho pelo fogo para nos livrarmos da luz cansada e do nome que damos ao medo.

Talvez seja essa a contradição. A culpa se quiserem.

A suprema necessidade de julgarmos o tempo, a sua natureza, esquecendo que ele nos atravessa e habita. Somos o tempo.

O Velho, domado pelo silêncio, calou-se. Vi-o, uns minutos depois, encostado, cabisbaixo.

Passei por ele. Cumprimentei-o. Agradeceu. Disse que conheceu bem o meu avô paterno. Trocamos duas letras. Perguntei-lhe o porquê de tanto descontentamento. Tanta angústia! Disse-me que era tudo junto! Muitas coisas ao mesmo tempo! O frio, a chuva, a saudade, estes tempos de pandemia! Tudo distante. Disse-me, depois, que até o vento, agora, rugia diferente. Disse-me que escutasse a ventania à noite.

- Ouça-a! Aquilo mais parece uma conversa zangada entre ela e os homens. Quase que nos culpando disto tudo!

Nada lhe disse. Não se pode domar a natureza .Ela não nos obedece. A que nos rege e a humana!

Parti guardando o meu segredo. Eu escuto o vento!

E nele, sempre, ouço canções de amor.

Paulo Santos é natural de Vidago. Casado, pai de dois filhos desempenha profissionalmente funções de gestor de projetos num Atelier de Arquitetura. É membro da ALTM – Academia de Letras de Trás-os-Montes e da comissão instaladora da Academia Vidaguense. Publicou duas obras poéticas: Seara Mondada (2016, ed. Chiado Editora) e Seara Dourada (2018, ed. Chiado Books). Concluiu a obra Seara Despida com edição prevista para 2023. Em coautoria editou, em prosa, a obra: A Justa – 1º Centenário da morte de Eugénia Campilho Montalvão (2020, ed. Lisbon Internacional Press) e Bonifácio da Silva Alves Teixeira – O benemérito de Vidago (2021, ed. Lisbon Internacional Press). Também se irá iniciar, como autor, no universo da prosa com a edição o do diário No farol de meus dias, em fase final de conclusão e com edição prevista para 2022. A convite da editora e do coordenador do projeto, a sua poesia integrou a Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Entre o sono e o sonho volume X (2018, ed. Chiado Books), volume XI (2019, ed. Chiado Books), volume XII (2020, ed. Chiado Books) e volume XIII (2021, ed. Chiado Books). Viu editado, em várias publicações, a sua obra em prosa e poesia, das quais destaca: 
Em poesia: Liberdade-Antologia da Poesia Livre - Vol. I (2019, ed. Chiado Books ) e volume II (2021, ed. Chiado Books ); Tributo - Homenagem a autores marcantes da literatura universal - Vol. 1 (2019, ed. Chiado Books); Quarentena – memórias de um país confinado (2020, ed. Chiado Books). Em prosa: Natal em Palavras - Coletânea de Contos de Natal (2018 e 2019, ed. Chiado Books); SMS – Coletânea de Micro narrativas Ficcionais - Volume I (2019, Ed. Chiado Books); Três quartos de um amor - Coletânea de cartas de amor –Volume III - (2020, ed. Chiado Books); Vozes Transmontanas - Coletânea 2020 da ALTM (2020, Edição ALTM). O poema da sua autoria “Beijo” integrou o tema “Timeless” do álbum “Melodic anthology” (2020) do músico Hélder Almeida.

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Tempo