A Natureza não nos obedece. Escrevi essa observação na página de um livro que breve irá cheirar a novo. Trago este singelo trecho à memória nesta noite que teço esta crónica e o dia, longo, se trajou de Inverno.
Anoto: A natureza escreve páginas com uma chuva tão cristalina, doirada no âmago pelo sol que se espreguiça por de lá das nuvens, que nos enfeitiça. Um vento despreocupado, depois, alheando-se do Verão que reina, convida a dançar os últimos pinheiros da Primavera. Observei-os no lusco-fusco. No topo da colina. No ponto mais alto da minha terra onde, quando longe, imagino que por ali se cruze o céu, as aves e a saudade.
Ouvi Leonard Cohen sibilando na brisa. As árvores, distantes, inquietas, dançando, unem-se pelas copas...Dance me to the end of love....
Regresso às letras. Aponto: As estações já não se vestem como outrora. Acordam ao calhas e vestem o primeiro trapo que os olhos remelados enxergam. À pressa. Como se não soubessem para onde vão.
Outro dia um velho (escrevo velho porque lhe quero dar dimensão...) resmungava que o tempo já não é como dantes.
Ouvi-o. Esbocei, em surdina, o meu mais sincero sorriso no interior. Segui, depois, caminho. O Velho ficou na esquina do decrépito Hotel a ralhar com os seus ponteiros. O tempo foi-lhe indiferente.
Nada é como dantes. Eu sei. Desconheço, contudo, se há culpados nisso.
Se ainda rugisse em nós o fogo vivo, e este lavrasse como outrora, rasgando planícies de espanto no céu dos dias, poderíamos culpar a falta de comburente que mantivesse a chama acesa. Mas nem isso. Aprendemos nos dias que o tempo é uma ordem fria. Insensível.
Do outro lado da rua, onde tudo parecia pior, nada como dantes, o velho esquece-se que o tempo ainda deixa algum gosto nos lábios. Mesmo quando a geada embranquece a tundra na cabeça, nos mastiga os ossos, as lembranças e as vontades e no fim nos cobre de temor.
Fica esse sabor a vida na seiva dos lábios. Se os mordiscarmos ao de leve, abrimos o caminho pelo fogo para nos livrarmos da luz cansada e do nome que damos ao medo.
Talvez seja essa a contradição. A culpa se quiserem.
A suprema necessidade de julgarmos o tempo, a sua natureza, esquecendo que ele nos atravessa e habita. Somos o tempo.
O Velho, domado pelo silêncio, calou-se. Vi-o, uns minutos depois, encostado, cabisbaixo.
Passei por ele. Cumprimentei-o. Agradeceu. Disse que conheceu bem o meu avô paterno. Trocamos duas letras. Perguntei-lhe o porquê de tanto descontentamento. Tanta angústia! Disse-me que era tudo junto! Muitas coisas ao mesmo tempo! O frio, a chuva, a saudade, estes tempos de pandemia! Tudo distante. Disse-me, depois, que até o vento, agora, rugia diferente. Disse-me que escutasse a ventania à noite.
- Ouça-a! Aquilo mais parece uma conversa zangada entre ela e os homens. Quase que nos culpando disto tudo!
Nada lhe disse. Não se pode domar a natureza .Ela não nos obedece. A que nos rege e a humana!
Parti guardando o meu segredo. Eu escuto o vento!
E nele, sempre, ouço canções de amor.