sábado. 02.12.2023

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Raiz

Um calor insuportável que me acompanha neste fim de noite. Da minha varanda, que percorro nas pausas em que gatafunho estas letras em busca de calmaria, observo os pirilampos e outros bichos alados, pequenos, que se atiram desvairados contra as lâmpadas dos candeeiros da avenida. Esse frenético bailado inglório. A perdição da luz. O estertor do fim.

Alguns, poucos, afastam-se da obsessão de ícaro, e mergulham silenciosos por entre a sombra, procurando o cheiro da terra. A segurança do chão. A raiz.

Entro para o conforto da cadeira. Meto o nariz na tela e as mãos, livres, remam nestas folhas alvas disfarçadas de ilhas. Deixo-as que me levem ao abrigo de suas areias.

Celebrou-se o Dia de Portugal. De Camões e das Comunidades Portugueses. Prometi a mim mesmo, desta vez, aqui, tecer letras alegres. Recheadas de esperança. Deixar que os istmos de minh´alma se encharcassem de fé.

Fechei o poema de O´Neil. E soltei os acordeões e os bombos nos braços de gigantones inquietos a anunciar aos berros e urros as festas da padroeira. Para que atordoem e despertem a alma lusa.

Se escrevesse triste ou em tons melancólicos, buscaria a minha província dos tempos do Renault 5, da Michele Mouton e dos “Shorts ”a ecoar o “comment ça va” nas cornetas do campanário... Esse (querido...) Verão de Agosto na Meca transmontana. Bela e imensa babel de expressões, cores, cacofonia, ridículo e risos. Aldeias a parir alegria pelas costuras. Portugueses na diáspora a reencontrar o aroma das ruas onde nasceram. Hoje foco-me na esperança. Na alegria conforme o prometido. E celebro este meu Portugal tricolor. De verdes, encarnados e amarelos (por vezes vibrantes outras vezes pálidos e cínicos).

No café, onde a meio da manhã mato o vício, gente tagarela despreocupada. Ouço essas vozes alheado nos meus pensamentos. Não sei do que falam. Muitos deles, muitíssimo mais jovens que eu, falarão da noite passada. Das voltas e do tempo. Eu gosto de falar da chuva. Do cheiro dela num dia quente, como este, que ferve. A banhar a pele da avenida ao de leve. A perfumar de outrora os meus sentidos.

O cheiro da terra. Volto ao início. Deixo os jovens na esplanada, absorto aos seus dizeres. Volto à varanda e a breve brisa que agora agita as árvores, perfuma o meu corpo de ventania. Já não tenho a necessidade da luz de outrora. Não me leva ao seu encalço num bailado cru. Nem as asas que os dias decepam, são menos livres enquanto houver ousadia e certeza de chão firme. Raízes!

Reparo que, aos poucos, reduzi o tamanho do meu Portugal. Da plenitude da sua extensão , com suas ilhas, á minha terra. Da minha terra á minha casa.

Aos poucos, sinto que o meu país é tudo aquilo que cabe no coração dos que amo.

E agora sim. Sou feliz nele.

Paulo Santos é natural de Vidago. Casado, pai de dois filhos desempenha profissionalmente funções de gestor de projetos num Atelier de Arquitetura. É membro da ALTM – Academia de Letras de Trás-os-Montes e da comissão instaladora da Academia Vidaguense. Publicou duas obras poéticas: Seara Mondada (2016, ed. Chiado Editora) e Seara Dourada (2018, ed. Chiado Books). Concluiu a obra Seara Despida com edição prevista para 2023. Em coautoria editou, em prosa, a obra: A Justa – 1º Centenário da morte de Eugénia Campilho Montalvão (2020, ed. Lisbon Internacional Press) e Bonifácio da Silva Alves Teixeira – O benemérito de Vidago (2021, ed. Lisbon Internacional Press). Também se irá iniciar, como autor, no universo da prosa com a edição o do diário No farol de meus dias, em fase final de conclusão e com edição prevista para 2022. A convite da editora e do coordenador do projeto, a sua poesia integrou a Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Entre o sono e o sonho volume X (2018, ed. Chiado Books), volume XI (2019, ed. Chiado Books), volume XII (2020, ed. Chiado Books) e volume XIII (2021, ed. Chiado Books). Viu editado, em várias publicações, a sua obra em prosa e poesia, das quais destaca: 
Em poesia: Liberdade-Antologia da Poesia Livre - Vol. I (2019, ed. Chiado Books ) e volume II (2021, ed. Chiado Books ); Tributo - Homenagem a autores marcantes da literatura universal - Vol. 1 (2019, ed. Chiado Books); Quarentena – memórias de um país confinado (2020, ed. Chiado Books). Em prosa: Natal em Palavras - Coletânea de Contos de Natal (2018 e 2019, ed. Chiado Books); SMS – Coletânea de Micro narrativas Ficcionais - Volume I (2019, Ed. Chiado Books); Três quartos de um amor - Coletânea de cartas de amor –Volume III - (2020, ed. Chiado Books); Vozes Transmontanas - Coletânea 2020 da ALTM (2020, Edição ALTM). O poema da sua autoria “Beijo” integrou o tema “Timeless” do álbum “Melodic anthology” (2020) do músico Hélder Almeida.

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Raiz