sexta-feira. 01.12.2023

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Outono

Na tua boca o Verão, já despido, adormece. Sinto-o a cada pulsar das folhas que bailam sinceras, ansiando terra onde se deitem. Tu, Outono, sempre me anuncias a quietude.

Verão quente, rápido. Pele seca e voz aflita. Gente em brasa. Música aos berros como se vivêssemos num tempo de colcheias. Perdi-me por aí. Mais sol em ferida. Mais calor que me secava as palavras. Em fogo vivo se esfumaram os dias.

Pelas ruas, repletas de vozes e olhares, o fim da pandemia anunciou velhos novos dias. Inaugurou o costume. O resto... guardo para mim.

Li algumas coisas neste dias em que o Demo fez termas na província. Dois livros de poesia que pairavam, em súplica, na estante das leituras adiadas. Dei-lhes fim. Um outro, de letra espessa, que prorroguei a meio. A alma, gasta pelos odores estivais e pelo ruído, pediu-me horizontes.

Uns dias por terras Asturianas. Uma viagem decidida pela necessidade de mar. Em seu encalço, peregrino, encontrei montanhas do tamanho da minha ânsia. Espinhas milenares a medir meças ao meu ser. A montanha, intransponível, que me habita. Admirei-as em contemplação. Senti nelas o secreto pulsar da vida. A poção dos dias. Telas, perfeitas, de alquimia. Onde o dossel de granito convidava ao seu íntimo. Revelando nele o odor a água salgada, nas ondas dos lençóis, tocando-me com a ponta dos dedos.

Espanha adentro, semeando por mim novas paisagens para lá do contrabando que meus olhos de menino recordavam. Dos tempos das fronteiras e dos caramelos, do arroz e do azeite escondidos nos secretos alforges das portas e no pneu escondido na bagageira.

Escrevo: A juventude que ainda trajo também já despede do Verão.

Descobri a “Sidra”. E o “salero” que inebria os corpos e liberta as horas.

A duas portas do albergue onde pousamos, havia rumor na rua. Gente que se divertia, almas entregues à noite, à festa, sem remorsos nem pudor. Rendi-me.

Embarcamos pela noite afora, ao som de músicas anglo-saxónicas, que me recordaram a Primavera que em tempos me agasalhou e ainda sei de cor. Esqueci o fado! Praça cheia. Mais gente rendida ao som e à companhia, indiferente ao tempo que se escreve devagar e ao recato. Aplaudindo os músicos a cada acorde vivido, vibrando a cada grito de liberdade e cumplicidade, como conchas repletas de desejos oferecidas pelas marés no fim de tarde (Bravo Guateque Experience!).

Pela madrugada avistava faróis que estendiam os feixes pelo firmamento, anunciando porto de abrigo e rota segura. Ouvia o oceano a cada raiar de dia. O segredo de seus murmúrios. Repletos. Indomáveis. Preenchi todos os vazios.

Não sabia o que dizer neste regresso. Perco-me a fiar demoras nesta página angustiada. Não trazia planos nem promessas. Não sabia se, a cada vaga dos caracteres, ainda havia em mim inspiração, vontade, ou o que seja.

Por vezes, longe daqui, olhando o azul do mar, sinto nas musas que me habitam a sedução da partida. Sempre temo que embarquem sem nenhum ruído. Me deixem órfão.

Então apercebo-me que o Outono já irrompeu suave. A lembrar o Verão que fui e já se despede. Prometendo-me o Inverno que tanto amo. Revelando a poesia que se veste e se retoca ao espelho. A falésia que revela a imensidão das vagas da minha alma.

A quietude.

Paulo Santos é natural de Vidago. Casado, pai de dois filhos desempenha profissionalmente funções de gestor de projetos num Atelier de Arquitetura. É membro da ALTM – Academia de Letras de Trás-os-Montes e da comissão instaladora da Academia Vidaguense. Publicou duas obras poéticas: Seara Mondada (2016, ed. Chiado Editora) e Seara Dourada (2018, ed. Chiado Books). Concluiu a obra Seara Despida com edição prevista para 2023. Em coautoria editou, em prosa, a obra: A Justa – 1º Centenário da morte de Eugénia Campilho Montalvão (2020, ed. Lisbon Internacional Press) e Bonifácio da Silva Alves Teixeira – O benemérito de Vidago (2021, ed. Lisbon Internacional Press). Também se irá iniciar, como autor, no universo da prosa com a edição o do diário No farol de meus dias, em fase final de conclusão e com edição prevista para 2022. A convite da editora e do coordenador do projeto, a sua poesia integrou a Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Entre o sono e o sonho volume X (2018, ed. Chiado Books), volume XI (2019, ed. Chiado Books), volume XII (2020, ed. Chiado Books) e volume XIII (2021, ed. Chiado Books). Viu editado, em várias publicações, a sua obra em prosa e poesia, das quais destaca: 
Em poesia: Liberdade-Antologia da Poesia Livre - Vol. I (2019, ed. Chiado Books ) e volume II (2021, ed. Chiado Books ); Tributo - Homenagem a autores marcantes da literatura universal - Vol. 1 (2019, ed. Chiado Books); Quarentena – memórias de um país confinado (2020, ed. Chiado Books). Em prosa: Natal em Palavras - Coletânea de Contos de Natal (2018 e 2019, ed. Chiado Books); SMS – Coletânea de Micro narrativas Ficcionais - Volume I (2019, Ed. Chiado Books); Três quartos de um amor - Coletânea de cartas de amor –Volume III - (2020, ed. Chiado Books); Vozes Transmontanas - Coletânea 2020 da ALTM (2020, Edição ALTM). O poema da sua autoria “Beijo” integrou o tema “Timeless” do álbum “Melodic anthology” (2020) do músico Hélder Almeida.

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Outono