sábado. 02.12.2023

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Sinfonias

 

A orquestra dos sentidos. O crepúsculo do âmago. O acorde mais delicado. A noite passeia-se cada vez mais cedo para bailar por entre os ruídos desabitados. Chega-me o tempo solto pelas avenidas... harmonias sem pressa. Permito-me a tudo o mais que o Verão esconde e o Outono teima em não contar.

Volto ao papel. Um dia, gostava de começar uma destas crónicas com: Era uma vez... E depois, por lá, inventar uma história de faz-de-conta onde eu não viva. Não será hoje. Chove e o dia amorfo não me inspira a fábulas. Já tive um carro da cor deste dia. Entretenho-me por minutos, entre pausas impostas no lançar destas redes, fascinado, a admirar uma folha que o vento transportou pelo céu enternecido e estatelou os braços contra a minha janela.

Brota uma terna suspeita que começo a enternecer de sono. Enquanto isso minha alma teima em apontar para a linha mais profunda do nada onde tudo se irá vestir de neve, ilhas e ruínas. Meus olhos confirmam. E logo atentam para outras margens.

Manhã em Chaves. Cheira a “Santos” na cidade .À feira dos santos. As ruas já se adornam de vestes e diversão. Por lá inundou-me um forte travo a farturas e a barracas de diversão.

Volto, por esses sabores, à idade do assombro. A passear pelas vias de outrora com os mesmos sons e perfumes num rio que já fugiu pelos arcos da velha ponte debruçada sobre o Tâmega . Hoje, sensato, prefiro viver esses doces aromas pelos olhos de meu filho. Pela certeza que regressar a esses lugares se torne num jogo de memória onde teime em apontar o que se perde e o que se ganha. Não o faço por falta de alimento. Nem pelo vazio, ou pelo coração agora de pedra do granito das vielas. Tão pouco pelo travo a açúcar alvo e moído que polvilha, como neve, a fartura que meu pai nos comprava numa dessas idas a Chaves. Ansiada o ano inteiro. Mas pelas imagens que guardo na moldura do corpo e hoje, nelas, expostas, já se revelam as ausências.

Sabia, no exato momento em que principiei todo este texto, que iria percorrer este caminho. Sei-o. Aceito-o. Crescer é, também, isso. Nas palavras, agora, encontro a única medida real para a vida. De sinceras e nuas .

Prefiro a promessa que as lentes de meu filho revelam. Por aqui as ruas mudaram de sentido. Já nada clama o desejo de carrosséis, matraquilhos, ou flocos de neve de açúcar refinado a banhar gulodices.

Por estes dias, hei-de percorrer em via sacra de pesar as imagens ausentes dos retratos que guardo. Com as mãos abandonadas, vazias de jardins, carregando um saco repleto de candeias alvas e saudade na algibeira.

Recordo-me agora: Nesses outros dias nunca chovia! Tão pouco as folhas, adornadas de asas ou sopradas pela sinfonia do vento, vinham visitar-me à janela. Como se nelas viessem aconchegos de outras vidas que, ao de leve, nos teimem em beijar assim.

OPINIÃO | As palavras tangíveis: Sinfonias