É Natal outra vez. A escarpa que me limita a terra anuncia-mo.
É sempre tarde quando rabisco estas letras. Quando começo este caminho. Deixo que a casa adormeça. Que o silêncio irrompa por entre paredes e seja somente perturbado pelo pulsar tranquilo destes carateres. Os sons da alma. Às vezes, aprendi-o, preciso fazer um longo caminho para saber como começar. Outras deixo que o caminho me leve sem perguntas nem sinais. Faço longas pausas entre parágrafos. Levanto-me. Procuro a janela onde pleno me projeto, para lá do vidro, para lá do frio e da noite. Para lá do tempo.
Dantes o Natal era, em mim, diferente. Começava aos primeiros dias de Dezembro e o pinheiro por todos enfeitado, colorido e simples, cheirava a pinho. O frio que despia a serra havia depois de beijar os corações da terra. Havia muita gente. Muitos que disfarçavam a vida difícil com coragem no rosto e afagos nos lábios. Paredes rotas de granito, aquecidas por uma lareira, com a família toda à volta a crepitar alegria. Um presépio que trago à memória. Um Trás-os-Montes tão longínquo quanto a candura que me borda os socalcos do rosto e impede as marés, mo permite agora.
Hoje o Natal custa mais. Sobretudo quando os prédios e as montras que inundam a estrada permanecem numa sombra agreste, adormecida, sem lâmpadas cintilantes que anunciem a quadra e o menino. Falta gente. Faltam gestos. Eu cresci.
É Natal. Eu sei. Mas sinto nos ossos que o mundo nunca esteve tão só. Tão Pobre. Tão pedinte. Tão distante e ensimesmado que se esquece da verdade, do milagre e dos outros. Desses mesmos Natais que tantos vão celebrar com bombas a iluminar a noite e pratos vazios na consoada. A dor que se cobre de luzes. É Natal. Eu sei.
Meus olhos parecem quebrar-se contra o vidro da janela. Prisioneiros deste corpo.
Faz tempo que deixei migrar o Natal que aprendi para o coração dos meus filhos. Para que o guardem e por lá nunca se perca. E eu sempre me encontre. (Desejo-vos meus filhos que nunca percais o Natal que vos dei a guardar. E se a vida, apressada, vos tentar roubar, guardai-o intacto no coração da vossa semente.)
Fim da estrada. Não tarda, falta pouco, irei adormecer. Sei que há todo um céu estrelado, que se esconde tímido para lá desta coberta densa de nuvens por cima da minha janela onde se me estilhaçam os olhos. Aprendi (há muitos Natais) que todas essas estrelas são cardumes repletos de luzes douradas a iluminar o cetim do firmamento e o coração dos homens. Respiro essa verdade que me inunda a alma e me aquece por dentro. Se embarcar nesses bandos, deixo que a terra, por baixo de mim, colha as estrelas que hei-de soltar com a certeza que ainda carrego.
É Dezembro meado. A serra já há muito embalou e deixou, desperta, a doce brisa que enleva a bússola que me norteia. O milagre que me envolve. A estrela alva que me conduz ao menino, ao seu casebre de esperança, onde entre amor e paredes remendadas me ensina o segredo: O Natal é a luz que plantamos no coração dos outros.
Por milagre, agora mesmo, volta o aroma a pinho para que me inunde a pele sedenta e me devolva os anos que já não tenho. A janela, enternecida, de novo se abre para me semear asas nos olhos. Só então, fascinada, me deixa partir.
A todos os leitores do Diário de Chaves, a toda a direção, redação e demais staff, aos colegas cronistas e demais colaboradores, vos desejo um Feliz Natal! Plantando Luz!