Esperança. É com os rios e afluentes desta palavra, que principio este novo ciclo de letras na génese deste novo (e ansiado...) ano de dois mil e vinte e três.
Esperança! Volto a repetir para que não encalhe este barco nas areias brancas do esquecimento. Este barco que chamo de esperança e o desejo que deposito nele para que nos leve seguros pelas águas dos dias! E aponto antes de marear:
Esperança em que volte a humanidade a este mundo, que não me parece meu, onde os dias parecem quebrar-se como aves à deriva num céu indiferente. Esperança em que termine esta guerra hedionda que nos cobre de sangue as mãos e o grito! Esperança em mais justiça e igualdade! Esperança em mais respeito do homem pelo homem! Esperança que cubra esta nudez global, esta carne, que nos envergonha, repleta de mentiras e desejos enterrados pela letargia. Onde tanto mentimos para esconder a coragem ou, tantas vezes, o desespero. Esperança!
O tempo que tecemos, desenfreadamente perdido pelas avenidas e pelas horas, como dilúvio de um rio que derrocou as margens e perdeu o Norte, ensina o quanto precisamos de novo de beber desta palavra. Esperança! Que ela seja alquimia! Medicina que cure o mundo! A primeira madrugada do novo dia! Esperança!
Chove perdidamente lá fora. Reparo que escrevo pela primeira vez: ano de dois mil e vinte e três. Escrevia mil novecentos e setenta e sete quando minha mãe me ensinou a “gatafunhar” as primeiras letras nessa longínqua Primavera de meus dias. Quando cerro, com ternura, as pálpebras, a minha vida parece-me que começa por ali.
Esperança era uma palavra que não sabia . Nesses lugares sei que não me fazia falta. Por ali o meu mundo era do tamanho da palma da mão de minha mãe - que abraçava com candura a minha - e os dias eram perfeitos.Vidago crescia sob a colina que meus olhos avistam no topo de uma árvore que adornava o jardim e tudo mais é o infinito azul dum céu de Junho polvilhado de fascínio e nuvens de faz-de-conta.
Essa noção regressa comigo ao branco desta página que perfumo de Esperança!
Esperança é a palavra que a vida nos ensina quando permanecemos com olhos de menino nas sístoles do coração! A pureza que ensina o mundo!
Esperança são os meus votos para este novo ano que nasce. A esperança que sei que existe e hoje vos a devolvo noutra coisa com o mesmo nome: Vontade!
É disto que falo nestas páginas sem que se me cale a voz. Vontade para sermos melhores! Vontade para sermos a esperança que o mundo nos pede. Vontade para depois o mudar!
Agora, subitamente, sinto que a melodia das chuvas que tombam desta noite primeira, secam para que eu embarque à quimera de outros dias. Mas é tarde. Sei que é tarde!
Aprendi tantos novos lugares. Aprendi que o tempo nunca nos devolve inteiros. Sei que hoje, se voltar à Primavera dos gatafunhos irei sair de lá com a infância atada por um cordel. Vidago mudou. A palma da minha mão abarca hoje, inteira, a mão de minha mãe e a árvore onde eu trepava para ver o mundo há muito secou de tanta espera. Eu cresci!
Se ainda ato com esperança - que entretanto aprendi - o cordel desses dias que nunca deixei partir, é para que não esqueça quem sou!
Ainda que por vezes não saiba se sou um homem crescido em que a primavera deixou o coração de menino... ou um menino onde o Outono entrou.
Feliz ano de dois mil e vinte e três. Sejamos a vontade que o mundo precisa!